quarta-feira, 7 de julho de 2010

Câmara Escura


Certa vez, deitada lendo "Demian", delicio-me com as descrições minuciosas de H. Hesse a respeito de uma estúpida fanfarronice ébria vivida por Sinclair, um jovem como muitos outros que talvez não saiba o que quer da vida.
Sem dúvida essa foto me traduz muito, muito essa cena. Nem me lembro mais se ela foi tirada antes ou depois de cristo, quero dizer dos cinco dias em que vivi, lambi, cheirei e abracei essa leitura.
Gestos sinuosos, uma unha grosseira, seios elegantes, o olhar. Um olhar em franca queda de si para um alterego talvez - não se sabe -, lá onde, segundo Demian "um olhar que havia dentro de mim, que sabia tudo".
Uma foto que me dá gosto em registrar a expressividade. Aqui eu queria chegar pois começa meu dia.
Guardei uma anedota romântica com carinho, inspiradora assim como essa fotografia.
Não sei nem por onde começar, mas como todo bom ator, fingirei para o leitor/espectador que estou dominando por inteira essa situação e que saberei escrever muito desenvolta daqui a meio segundo.
Bem, tudo começou a caminho de Madureira. Uma estudante saca da bolsa em pleno trem sua câmera fotográfica para registrar a vida passar. Era vendedor de arnica, buganviles ao léu, trabalhadores vivendo para trabalhar. Até que seu professor de história da cidade nota uma câmera bizarra na mão da menina, quase um brinquedo, e como todo bom sábio percebe que ela só pode ser uma amante do gênero. Indica um curso no 6º andar, onde segundo ele os alunos não só revelam suas próprias fotos como também aprendem até a fazer uma câmera. Fechou! Lá foi ela.
Ela conheceu o laboratório, comprou películas a preço de custo, observou algumas fotos e alguns processos. Um corredor todo preto a conduziu a uma sala. Sala? Não se via nada, mas por dedução, uma sala.
"Tem alguém aqui, não estou vendo nada."
"Eu estou te vendo perfeitamente. Espera um pouquinho que o seu olho se acostuma e você vai ver tudo."
Fascinante. Estava rodeada por papéis em processo de se tornarem fotografias. E um rapaz atencioso. Luzes levemente vermelhas. Agora sim estava começando a se realizar melhor. Quanta vontade que veio nela, correndo pelas veias num impulso de botar a mão na massa e querer fazer tudo, absolutamente tudo. Negativo, revelar, olhar o foco e ver se a luzinha está granulada, ampliar, 1min e meio, 5min, deixar... tocar. Deleite, orgulho, oferta. Interessada, interessado.
Incrível como a junção de interesses flui tão simples, sendo o flúido por si só já simples. Um interesse de um lado, dos olhos arregalados, em conhecer. O interesse do outro lado, de olhos relaxados, em passar adiante, apresentar, mostrar. E assim foram os dois com cabeças sempre baixas visando fotografias e processos ainda mais embaixo. Até conduzirem-se à luz de fora para ver uma... ai! Ofusca! Para ver uma foto e... o menino era um anjo.
Os dois voltaram à sala para continuar as curiosidades e trabalhos. Até que tudo se concluiu. O menino continuou ali anjo, e a mocinha foi tomar uma cerveja e um dia volta. Volta porque tem películas em P&B que querem ser um dia papéis de carta.
A cerveja estava gelada e ela sorriu, olhou pela janela do ônibus Galosório. O sol queimando a maçã do rosto, o cabelo queimando o dourado e o vento bagunçando tudo.

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